Livros
Quando eu era pequeno e pedia às pessoas daqui de casa que lessem pra mim uma coleção de livros infantis de contos de fadas todos faziam cara feia e davam logo um jeito de se safar da tarefa. Mas depois que eu aprendi a ler tive preguiça de pegar essa mesma coleção, pois acho que já estava enjoado das figuras. Quando fiquei mais velho, a série vaga-lume me era até interessante e cheguei a pegar 3 volumes da biblioteca da escola por vontade própria. Infelizmente, até os meus 16 anos eu não lia praticamente nada que não fossem os “livros-chatos-que-os-professores-de-ensino-fundamental-e-médio-exigem”. O que fazíamos com eles? Resumos, claro, ou então um teatrinho ordinário “porque senão você não ganhará pontos e será reprovado”. Todo esse tempo perdido é irrecuperável, mas eu tenho aprendido a não cobrá-lo de mim mesmo porque eu ainda não havia descoberto o sabor que tinha a leitura, nem a importância para o pensamento, nem para a formação de um olhar mais sensível a objetos, pessoas e acontecimentos.
A obrigação de ler para passar de ano se reveste numa capa dourada de discurso pedagógico, mas ao invés de ser um incentivo, é uma mutilação do prazer pela leitura. Apesar de todos já sabermos disso, o exemplo que eu vou dar agora ninguém nunca ouviu porque aconteceu aqui em casa. É que eu conversava com minha sobrinha de 5 anos e perguntei se ela gostava de ler. Ela disse que não, porque quando ela errava a pronúncia do “b + a = ba” na escola, a professora tirava pontos. Pronto. Apesar da diferença de idade entre nós, parece que pouco se evoluiu em questões didáticas (pelo menos quando se trata de aplicação da teoria). Agora, a parte engraçada: Eu, querendo ser solícito, peguei um livrinho da história do Peter Pan para tentar mostrar a ela como pode ser interessante ler. Chegando ao final, quando o protagonista consegue derrotar os intrusos da ilha, o narrador relata: “O nosso vencedor voltou ao bosque, pegou uma corda e amarrou os piratas”. Eis que eu perguntei à minha sobrinha quem era “O nosso vencedor” e ela responde que é “Jesus”. Rsrs. Depois eu trouxe pra ela ver a mesma coleção de histórias de quando eu era pequeno e li um dos livros para ela. No dia seguinte – a pedido dela – tive de ler todos!!!
De volta à minha história, eu só comecei a ler por deliberação e prazer a partir dos 17 anos, quando descobri que “O Senhor dos Anéis” era, na verdade, a adaptação cinematográfica de uma obra literária. Eu fiquei muito empolgado e resolvi comprar o primeiro livro da trilogia: “A sociedade do Anel”. Data de 07.01.2004, portanto, o primeiro livro que eu comprei por vontade própria. Eu passava horas olhando os mínimos detalhes da ilustração da capa, da contracapa, da lombada, e o economizava, lendo poucas páginas ao dia, por medo de que acabasse tão depressa aquela emoção trazida pela história, mesmo sabendo que, se eu juntasse os outros dois volumes – “As Duas Torres” e “O Retorno do Rei”, os quais eu compraria prontamente em poucos dias – o montante de páginas chegaria a 1200, e que com uma quantidade dessas não havia motivos para economia.
Depois disso vieram os outros livros do mesmo autor: “O Hobbit”, “O Silmarillion”, “Contos Inacabados”, seguidos das aventuras púberes e mágicas de Harry Potter, e após essa introdução aventuresca e fantástica, o início de coisas levemente mais cabeçudas, como o existencialismo erótico dos vampiros de Anne Rice, o wit de uma égua vitoriana chamada Oscar Wilde, Machado de Assis, que eu ainda não entendia a genialidade, o pedantismo (haha) da nada simples Nélida Piñon, e outras tantas coisas interessantes que trouxeram epifanias e eurekas ainda não imaginadas. (Clique Aqui e poderá vê-las).
A faculdade de Letras também me trouxe experiências e pessoas incríveis, com as quais pude compartilhar leituras – não tantas quantas eu queria, infelizmente – e conhecer autores que, certamente, não conceberia a existência. Passei a ver a literatura nacional com olhos respeitosos e de admiração pela rica produção que antes eu desdenhava – admito! – por ainda ser um moleque insolente com pentelhos nascendo aqui e ali, e só saber reproduzir o discurso de ódio que o brasileiro tem pelo Brasil. (Essa serve pra você mesmo, que ainda acha que só o que vem de fora é bom, seu tapado!!!)
Hoje eu compro livros compulsivamente, mais do que consigo ler, tenho um cuidado obsessivo com alguns e pequenos prazeres com o objeto em si. A exemplo, gosto de sentir quando o peso do livro se transfere da mão direita para a esquerda na medida em que avançamos na história e, saindo do início, chegamos às páginas finais. Também acho visualmente mais bonitos os livros grossos, que passam das 400 páginas. Na estante eles se destacam e o olho enche de água de vontade de ler – em comparação com a boca com vontade de comer –, mesmo que eu não os leia imediatamente. Gosto de rearranjá-los na estante de vez em quando, pelo prazer de manuseá-los, olhar as capas, relembrar as histórias dos que eu já li, e imaginar as que ainda virão, nas próximas leituras. Gosto quando um livro chega pelo correio, a aflição causada pela caixa, notas fiscais, isopores ou plástico bolha que impedem de ver logo a capa, de cheirá-lo e tateá-lo, de folhear as páginas. Gosto, em especial, do primeiro parágrafo, ou das primeiras linhas de um livro, porque tudo é novo e não parece que vai ser ruim, e às vezes até leio em voz alta.
Mas acreditem ou não, esse texto todo foi escrito para chegar aqui: Depois de muito tempo olhando preços e esperando que eles abaixassem, e depois de ouvir tanta gente que eu admiro falando bem e indicando, chegou aqui em casa para mim um exemplar de “Em Busca do Tempo Perdido – Vol. I – No Caminho de Swann”, do Marcel Proust (ituto). Fiquei muito feliz! A arte da capa é muito bonita e as fotografias que a ilustram foram retiradas do site Getty Images. E eu acho que a cor (azul) combina muito com o conteúdo do que eu li até agora. O livro tem exatas 558 páginas. Essa edição conta com nova revisão, um prefácio ótimo, cronologia do autor, várias notas explicativas de rodapé – que por vezes revelam pequenos trechos da história, o que me deixa meio chateado, haha –, um resumo do volume, ao final , e um posfácio, que ainda não li e não posso dizer se é bom. Na contracapa há um trecho escrito pelo André Gide, que resenhou a obra do Proust.
Lembro-me que um professor disse, certa vez, que era um preconceito essa insistência em achar que só o texto na língua original era bom. E eu concordei porque por mais que se tenha um conhecimento bom em uma língua estrangeira, é indiscutível que se tem maior domínio da materna. E uma tradução boa nos dá mais acesso ao texto original do que uma tentativa de leitura na língua em que uma obra foi originalmente escrita. A tradução dos quatro primeiros volumes de Em Busca do Tempo Perdido é respeitada e confiável por ser de um poeta brasileiro: Mário Quintana. Há quem não goste da poesia dele. Eu nada digo porque mal conheço. Mas a habilidade de um poeta com as palavras e a sensibilidade com a linguagem é inegável. Dois dos três volumes póstumos foram traduzidos por nada menos que Drummond e Bandeira.
Sobre o conteúdo eu ouso falar pouco, mas o pouco que eu vou falar acho que já vai ser muito, porque não li mais do que 1/5 do livro ainda. Aconteceu de eu querer parar de ler quando estava no começo, porque eu percebi que eu estava prestes a conhecer uma das escritas mais bonitas a que já tive acesso, e se continuasse, ela se esgotaria. Uma certeza é a de que tudo, mas exata e intransigivelmente tudo o que eu ler depois dessa obra, há de se subjugar, inevitavelmente, a essa forma única de organização narrativa e de escolha dos momentos mais oportunos para fazer brotarem as perfeitas palavras na (e da) página.