domingo, 25 de abril de 2010

Para quem sabe ler, pingo é letra.

 Detalhe de "Baco" - Caravaggio


"Se uma águia fende os ares e arrebata esse que é uma forma pura e que é suspiro de terrenas delícias combinadas; e se essa forma pura, degradando-se, mais perfeita se eleva, pois atinge a tortura do embate, no arremate de uma exaustão suavíssima, tributo com que se paga o vôo mais cortante; se, por amor de uma ave, ei-la recusa o pasto natural aberto aos homens, e pela via hermética e defesa vai demandando o cândido alimento que a alma faminta implora até o extremo; se esses raptos terríveis se repetem já nos campos e já pelas noturnas portas de pérola dúbia das boates; e se há no beijo estéril um soluço esquivo e refolhado, cinza em núpcias, e tudo é triste sob o céu flamejante (que o pecado cristão, ora jungido ao mistério pagão, mais o alanceia), baixemos nossos olhos ao desígnio da natureza ambígua e reticente: ela tece, dobrando-lhe o amargor, outra forma de amar no acerbo amor." ¹

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¹ "Rapto" (Adaptado do formato de poema para prosa) - In: Claro Enigma - Carlos Drummond de Andrade. .

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Rufus Wainwright - All days are nights

All days are nights: Songs for Lulu (arte da capa)



Foi pelo “Release the Stars” (2007) que eu conheci o Rufus e depois escutei o resto do trabalho dele. Desde então (a não ser pela tournê que fez com músicas da Judy Garland) não lançou mais nada. Eu estava com saudade de coisa nova.  A mãe dele, Kate McGarrigle, morreu em janeiro deste ano e o novo álbum é meio que um réquiem ou homenagem a ela. Todo composto para voz e piano, “All Days are Nights: Songs for Lulu” tem um tempo de duração equilibrado, 48 minutos. Isso ajuda a não deixá-lo cansativo. Tive uma primeira impressão ótima do álbum. Pra quem não suporta a voz do Rufus, sinto informar que continua a mesma. A boa notícia é que dá pra ouvir pouquíssimas daquelas sugadas de ar típicas dele. As letras e o clima são tristes, mas a voz e o piano são fortes. Nunca o ouvi tocar com tanta vitalidade. Parece que ele fez mesmo o trabalho que sempre quis. Se existe um toque de pop me avisem, porque eu só consegui escutar acordes complicados, semitons, uma pitada de dissonância quase experimental e contratempos. Nada de melodias fáceis de assimilar. Destaque (com marca texto verde,rs) para a trilogia dos sonetos de Shakespeare, não por ser algo inédito alguém cantar poemas, até porque não é mesmo, mas porque foram musicados bela e tristemente. Triste pra mim, em música, é elogio forte. Não sou emo, não, senhor(a)! É que sempre me parece que as músicas tristes não têm pressa de serem executadas. E pra quem tem paciência e tempo de parar pra ouvir, são degustadas de maneira bem melhor. Ah, e ele canta uma música inteira em francês (eba! Já estava me cansando de Complainte de la Butte). E acho que ouvi a tampa do piano (caixão da mãe?) sendo fechada no final silencioso da última música.


Edit (12 de Abril): Depois de ouvir mais algumas vezes o álbum todo, eu não dou mais tanto destaque para os poemas, e sim para outras músicas: a que ele escreveu pra mim,rs:"So sad with what I have"; A  desesperadora "Martha"; a 'placíbica' "What would I ever do with a rose" (como assim how it would ever get me high?); e Zebulon (where have you been zabulon - isso me lembra "Por onde andará Stephen Fry/Dulce Veiga. Freedom is apparently all I need. But who's ever been free in this world?). A que eu menos gostei é a saltitante e que tem título de 'eu sou mimado' "Give me what I want and give it to me now". As letras talvez nem sejam tão tristes assim. Estão tratando de assuntos menores, ou então é a impressão que eu tive quando me lembrei das outras letras dele, que falam sobre cidades e monumentos, coisas mais abrangentes e megalomaníacas. Agora ele está... sereno, íntimo, minimalista. É, é isso.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Kurosawa ou krueger? where's Freud numa hora dessas?

Instalação de Ernesto Neto

Há 2 meses sonhei que um velho louco, de barba e cabelos longos (não era o Gandalf, nem o Dumbledore, nem Deus) me disse que não se desfaria da barba até que tivesse coragem suficiente para enfrentar o próprio medo (pfff, Paulo Coelho me persegue? Sai, sarna.rs). Ele me levou ao segundo andar da casa por um curto lance de escadas, abriu a porta e me mostrou uma aranha enorme, que imediatamente saiu da teia onde estava para se rastejar sobre ele de cima a baixo várias vezes. Ele, de braços abertos, ria loucamente. A aranha desceu as escadas e andou por todo o cômodo. E eu, ao lado do velho, morria de medo. Na hora que acordei, cantei, instintivamente (rs) :

When will you do what you say you'll do?
How could you really do it?

Will you keep on running? Baby settle down
Will you keep on running? You'll lose your home
Will you keep on running? Baby settle down
Will you keep on running?
Run on, run on. You'll rule your den.

Got me to crawl on baby with the grass was very high
Just keep on crawlin’ till the day I die

Crawlin’ black spider
Crawlin’ black spider ¹

***

Há 3 semanas sonhei que havia uma única teia de aranha que se sustentava nas paredes de um cômodo da minha casa e se alastrava para outros cômodos, passando dos limites da porta. Nela, algumas poucas aranhas grandes, várias filhotes.  Alguém me explicou no sonho: “Então você arranca toda ela da parede e usa rapidamente porque a essência, o sumo, dura pouco tempo (e os finos fios, à medida que eram arrancados, ficavam grossos como um intestino por não estarem mais esticados). Me lembrei, mais tarde, do Ernesto Neto, que tem instalações ‘labirínticas’, algo meio Shelob’s lair ², de movimentos caóticos, e que lembram também as teias que 'vi'.

Receita para o sonho: Antes de dormir, coma arroz, feijão e ovo.

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Há algumas horas tive sonho ‘pot-pourri’, daqueles que de segundo em segundo a cena se modifica e, quando acorda, você se lembra de poucas. Então o de hoje foi assim: 1. Eu, deitado no chão de um local coberto, apoiava as penas em uma cobra que se estendia do teto ao chão formando colunas verticais e horizontais, enquanto eu esperava um amigo, que marcou compromisso mas não apareceu. 2. Um filho planejava o assassinato do pai. 3. Eu, em posição plongée, via muito sangue escorrer do tronco de várias árvores e formar, rapidamente, um rio.

Receita para o sonho: Algumas horas antes de dormir, devore uma porção grande de yaksoba.

P.S.: Acordei com os pés gelados e sentindo um vento frio. Não era febre. Fiquei muito feliz pois pude vestir, pela primeira vez no ano, e depois de muito tempo, uma blusa de mangas compridas bem quentinha. Esse clima me deixa muito bem.

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¹ Cat Power - Keep on Runnin'.
² Toca de Shelob (ou Laracna), a aranha velha de "O senhor dos anéis".